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terça-feira, 9 de setembro de 2008

Almirante Júlio Saboya , aponta os desafios da vigilância das fronteiras marítimas

Almirante Júlio Saboya | Chefe do Estado-Maior da Marinha
aponta os desafios da vigilância das fronteiras marítimas

Ao mesmo tempo em que o governo federal alardeia a descoberta de número crescente de campos petrolíferos em alto-mar, a Marinha cobra mais recursos para a ampliação de sua frota da navios de guerra. Segundo o almirante-de-esquadra Júlio Saboya, chefe do Estado-Maior da Marinha, o número atual de embarcações e outros veículos como aviões e helicópteros está muito aquém daquilo que ele aponta como a quantidade mínima necessária para uma vigilância efetiva do mar territorial brasileiro e da zona econômica exclusiva.

Durante visita a Salvador, o segundo oficial na escala de comando da Marinha concedeu entrevista exclusiva ao repórter JOÃO MAURO UCHÔA.

Saboya revelou que a Marinha já iniciou estudos para a construção de uma estrutura de radares semelhante ao Sistema de Vigilância da Amazônia, o Sivam, que é controlado pela Força Aérea Brasileira. A idéia é instalar antenas nas plataformas da Petrobras em alto-mar.

Mesmo diante de um cenário de aperto financeiro – agravado por sucessivos contingenciamentos de recursos –, o almirante defende a continuidade do polêmico programa nuclear da Marinha, cujo objetivo principal é a construção de um submarino nuclear. Segundo Saboya, a construção de uma arma deste tipo pode garantir um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, mas também poderá ajudar a aumentar a oferta de energia elétrica.

ATARDE | Em 1963, a França enviou um navio de guerra para a costa da região Nordeste a fim de proteger seus pesqueiros que insistiam em invadir o litoral brasileiro atrás de lagosta. O então presidente João Goulart decidiu acionar a Marinha para expulsar os franceses. No entanto, o que se viu foi um festival de limitações. A espinha-dorsal da Marinha recebeu ordem para se deslocar do Rio de Janeiro para o litoral do Nordeste, mas muitos navios ficaram pelo meio do caminho ou nem sequer tiveram condições de zarpar. Este mês, a Marinha realiza um exercício de ataques simulados às plataformas da Petrobras em alto-mar. A esquadra está em condições de vigiar e defender a costa brasileira?

JÚLIO SABOYA | Não. O que existe atualmente é algo parecido com um núcleo de esquadra. Temos pessoal adestrado e muito bem preparado, mas não há meios suficientes para a área que está sob nossa responsabilidade, dentro da zona econômica exclusiva, que se estende, em alguns pontos, a 200 milhas da costa, mas, em outros pontos, vai até 350 milhas. Isso representa área equivalente a cerca de metade do território brasileiro em terra. É óbvio que não é com a esquadra que temos atualmente e nem com os navios-patrulha que poderemos garantir a proteção de uma área tão grande. Ainda há concentração de campos petrolíferos no litoral do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, mas já existem muitos campos nas regiões Norte e Nordeste. Tudo isso implica a disponibilidade de meios. Com o que temos hoje, não há como garantir a quantidade ideal de patrulha naval e de segurança. Por isso, temos que aplicar o princípio da dissuasão, ou seja, precisamos de meios navais que mostrem a potenciais agressores que qualquer incursão no território brasileiro pode custar muito caro (ao agressor). Isto é fundamental, pois não temos condições de ter, a médio prazo, meios suficientes para cobrir todo o mar na nossa jurisdição.

AT| Que tipo de acréscimo à frota atual é necessário para que a Marinha tenha condições de fazer uma vigilância efetiva no litoral brasileiro?

JS | Precisamos de várias coisas. A primeira, é um sistema semelhante ao Sivam (o Sistema de Vigilância da Amazônia, operado pela Força Aérea Brasileira), que funcione no mar. Já está sendo iniciada uma série de entendimentos para se utilizar as plataformas da Petrobras, que são estruturas que poderão abrigar um sistema de radar com acompanhamento por satélite Desta forma, teremos cobertura global da zona econômica exclusiva. Também precisamos de escutas submarinas. Um submarino em condições perfeitas de navegação ainda é uma arma invisível. Tudo isso faz parte de um pacote.

Mas precisamos de outras coisas. Não basta termos apenas mais navios e plataformas flutuantes. O ideal é uma Marinha com dois núcleos de esquadra, sendo um no Rio de Janeiro e outro no Nordeste. Mas os Distritos Navais também precisam de navios em número compatível. Mas esta questão não é tão simples de resolver.

Não se trata de duplicar ou triplicar a frota atual. A solução é mais complexa. Depende do tamanho dos navios. Queremos mais navios do porte do Gravataí (último navio de um lote de seis embarcações de patrulha entregues ao Brasil por um estaleiro alemão na década de 1990), mas também precisamos de embarcações de maior tonelagem, com capacidade para permanecer mais tempo no mar. Precisamos de 50 navios de patrulha espalhados pela costa brasileira, mas só temos 16. Isso é necessário para termos um mínimo de cobertura.

AT | A Marinha vem sofrendo dificuldades para manter a capacidade operacional do porta-aviões São Paulo. No início deste ano, nenhum dos 23 caças a jato A-4 Skyhawk adquiridos do Kuwait em 1998, por R$ 70 milhões, tinha condições de vôo. Recentemente, a Marinha passou a cobrar uma fatia maior dos royalties obtidos com a exploração do petróleo. Isso seria suficiente para garantir a modernização da frota?

JS | O porta-aviões São Paulo já é um senhor de idade que passou por uma série de modernizações. O navio está na fase final de recuperação. Nosso objetivo é torná-lo operacional até o final do ano que vem. Entretanto, cada vez que abrimos uma nova frente de trabalho no navio, descobrimos algo que não pode deixar de ser reparado.

O navio vai voltar a operar em condição muito superior à que ele estava quando foi comprado. Em 2003, chegamos a ter seis A-4 embarcados no São Paulo, mas a parada do porta-aviões diminuiu a capacidade da Marinha de manter os pilotos voando. Além disso, os próprios aviões também começaram a sentir o peso da idade e tiveram problemas nas turbinas. Fizemos contratos de manutenção, mas todas as turbinas que voltavam foram reprovadas. Isto fez com que a disponibilidade de aeronaves fosse diminuindo. Mas há cerca de 15 dias, já começamos a botar os A-4 para voar. É claro que nunca mais serão os 23. Muita coisa foi reaproveitada, pois temos dificuldades de encontrar peças de reposição. Teremos de ter pelo menos seis ou sete A-4 prontos para voar. É um programa que virá junto com o retorno operacional do São Paulo. A questão dos royalties do petróleo é lei. A Marinha tem direito a um percentual. O que acontece hoje é que ela recebe uma parte como fonte de recursos dentro do orçamento anual. O restante fica com o governo, que faz contingenciamento para gerar o superávit. O que recebemos é insuficiente para fazer o reaparelhamento e acaba se misturando com despesas de custeio.

Temos cerca de R$ 4 bilhões que deveriam ter vindo para a Marinha nos anos anteriores, mas acabaram sendo retidos pelo governo. Isso é quase o que precisamos para fazer o reaparelhamento A decisão é do governo. O papel da Marinha é apontar aquilo que ela precisa.

AT | Desde a década de 1970, a Marinha vem desenvolvendo um submarino nuclear. As estimativas mais otimistas dizem que serão necessários mais seis anos para a conclusão da obra, que já consumiu cerca de R$ 2,32 bilhões. Por que o Brasil precisa de uma embarcação deste tipo?

JS | Um submarino nuclear é um elemento de dissuasão fundamental. A existência dele é suficiente para deixar todo mundo de guarda fechada. Sozinho, ele faz a dissuasão que talvez dez submarinos convencionais não façam. Por outro lado, não podemos abrir mão do submarino convencional, que é ideal para águas não muito profundas. Entretanto, as zonas de maior profundidade e cada vez mais afastadas da costa – e onde estão sendo descobertos poços de petróleo – são territórios para um submarino nuclear. É ele que tem velocidade, mobilidade e capacidade para permanecer invisível.

Quem tem um submarino nuclear senta no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Todos os países que estão lá têm esta tecnologia, coisa que ninguém cede. Nós tivemos que desenvolver a nossa. Ninguém ensina a enriquecer urânio. Cada país tem a sua tecnologia.

Nós já dominamos o enriquecimento do urânio, mas precisamos de um gerador de energia elétrica. A planta nuclear do submarino nada mais é do que um gerador que move motores de propulsão.

Precisamos de recursos e mais seis anos – isto é uma estimativa – para concluir esta planta. Já temos reatores de potência zero. A planta que já funciona em Aramar (Centro Experimental da Marinha, localizado no município paulista de Iperó), tem capacidade para abastecer uma pequena cidade e é mais do que o suficiente para um navio nuclear. Mas ela também pode fornecer energia elétrica a uma cidade com 20 mil ou 100 mil habitantes, conforme a potência do reator.

O programa da Marinha permitiu ao Brasil dominar todo o sistema de geração de energia elétrica a partir da energia nuclear. É uma vitória imensa.

AT | O Brasil ainda sofre pressão externa contra o programa nuclear?

JS | A pressão foi mais forte no início, quando era mais fácil interrompê-lo. Um país que tem a matéria-prima necessária e consegue desenvolver tecnologia nuclear adquire condições de colocar material no mercado internacional a preços mais baratos. É por isso que quem segue este caminho pode sofrer restrições e barreiras. Do ponto de vista bélico, ninguém tem dúvidas de que o Brasil não vai produzir bomba atômica.

AT | Em sua última visita à Rússia, o presidente venezuelano Hugo Chávez tentou acertar a comprar de submarinos de propulsão convencional, porém mais modernos do que os do Brasil. O apetite voraz de Chávez por armamento preocupa a Marinha?

JS | A imagem da Venezuela como oponente do Brasil é algo que não passa pela nossa cabeça. Não temos atritos de fronteira com eles e não temos nada a ver com seus problemas internos. Não interessa se ele (Chávez) vai ficar mais ou menos forte militarmente do que o Brasil, pois isto é um processo cíclico. Hoje, ele pode ser mais poderoso; amanhã, não. A Marinha olha o crescimento do potencial bélico da Venezuela com certa inveja.

AT | Se proteção dos campos petrolíferos é a prioridade para a Marinha, a vigilância da Amazônia passou para segundo plano?

JS | Não. São duas coisas diferentes – a Amazônia Azul e a Amazônia Verde. Ambas têm a mesma importância. A Amazônia Verde é atribuição prioritária do Exército. Na Amazônia Azul, a responsabilidade é prioritariamente da Marinha.

Temos apoio do Exército, se for necessário, e, principalmente, da Força Aérea. Mas as duas Amazônias precisam ser defendidas.

AT | O Exército é contrário à demarcação de reservas indígenas de grandes proporções em área de fronteira, como a da Raposa/ Serra do Sol, em Roraima. A Marinha também vê áreas deste tipo como ameaça à soberania nacional?

JS | Este é um assunto que não diz muito respeito à Marinha. Os rios navegáveis continuam deste jeito dentro ou fora do território indígena. Não faz sentido botar barreira em rio.

AT | Os Fuzileiros Navais participam da Missão de Paz no Haiti. Que tipo de ensinamento esta experiência trouxe?

JS | Uma ação deste tipo traz componentes psicológicos e de treinamento que envolvem aspectos que não existem nos exercícios. A presença brasileira no Haiti é extremamente benéfica. Prova disso é que a ONU sempre pede para que as tropas permaneçam. É evidente que problemas pontuais podem ocorrer. Alguns dizem: será que não estamos pagando um preço muito alto? Acho que não. Se não fizermos isso, não vamos nos mostrar à comunidade internacional. É um caminho necessário para quem almeja sentar no Conselho de Segurança da ONU.

AT| No mês passado, o advogado haitiano David Josue esteve em Salvador para pedir a saída das tropas brasileiras do Haiti. Ele prometeu entregar um abaixo-assinado ao presidente Lula cobrando uma solução para a questão. Segundo ele, militares brasileiros da Força de Paz teriam praticados “atrocidades” no Haiti. O senhor tem conhecimento desses fatos?

JS | Sei que ele mostrou fotografias e filmes feitos há dois ou três anos. As imagens podem ter sido feitas quando a coisa estava mais complicada, com a atuação de gangues em Cité Soleil (a maior favela do Haiti). Mas eu não tenho conhecimento de ocorrências que colocassem em dúvida a respeitabilidade da tropa brasileira. Seríamos os primeiros a tomar providência.

Podem ter acontecido fatos pontuais, mas eu garanto que as providências foram tomadas Cheguei a ver alguns vídeos na TV, mas eram imagens datadas de 2006. Por que não houve denúncia?

A situação política no Haiti ainda não está estável. É por isso que a tropa de paz ainda está lá. As supostas denúncias parecem jogo político.

AT | Há quem diga que as tropas brasileiras estão aproveitando o Haiti para treinar operações no Rio de Janeiro. Alguns comandantes do Exército defendem abertamente o emprego das Forças Armadas no combate ao crime. Qual é a sua opinião sobre esta questão?

JS | Minha função é cumprir a lei. A Constituição não permite isso Pessoalmente, não gostaria de me meter em assuntos policiais. O militar de carreira está armado para enfrentar o inimigo do País, mas não para brigar com nossos irmãos, mesmo que eles sejam apontados como marginais. Não podemos esquecer que muitos dos nossos homens são vizinhos deles.

Isto é algo muito diferente de ter que brigar com um inimigo externo que não mora ao meu lado e não sabe o meu nome.

AT| Embora o presidente Lula tenha mandado encerrar a discussão sobre a revisão da Lei de Anistia, o debate continua. A resistência das Forças Armadas brasileiras em revisar sua história não acaba comunicando a imagem de que os equívocos e excessos do passado poderão se repetir?

JS | Sempre que houve solicitação, a Marinha entregou documentos que estavam em seu poder. Mas há um mal-entendido nisto. Acham que temos coisas que não temos. Eventualmente, surgem alguns dados de gente que trabalhou nisso (na repressão), gente que guardou documentos que não estão mais com as Forças Armadas.

Esta celeuma não leva a lugar nenhum. Só serve para cutucar feridas que estão cicatrizando. Em qualquer crise interna que resulta em confronto armado, os dois lados fazem besteira. A anistia veio
para acabar com isso. Não entendo isso como uma negação em revisar o passado. É melhor olhar para o futuro do que ficar remoendo fatos passados que machucam a todos.

DEFESA@NET Série de matérias do jornal O Povo Ceará:

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