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terça-feira, 4 de março de 2008

ALTE. FLORES- Retomada alvissareira?

Retomada alvissareira?

Mario Cesar Flores


Nos últimos meses a defesa nacional tem sido objeto de notícias alusivas a intenções do governo de retomar o há muito tempo negligenciado preparo militar brasileiro, por vezes associadas a programas militares em curso na América do Sul. Vale a pena comentar essa aparente e inusitada atenção.

A qualidade e a credibilidade do preparo militar de qualquer país dependem da lógica da concepção político-estratégica que inspira seu projeto. No Brasil essa concepção conceitual básica deve compatibilizar, realisticamente e sem devaneios ufanistas, o preparo militar com a posição relativa e a responsabilidade do Brasil, a que o credenciam suas circunstâncias geográficas, econômicas e demográficas regionais. Sem devaneios ufanistas, mas atenta ao fato de que nosso mundo hobbesiano não funciona condicionado apenas pelo jurisdicismo utópico, imune às injunções do poder: o peso relativo do Brasil terá influência inferior à sugerida por suas demais circunstâncias, se não contar com respaldo de poder militar compatível com elas.

Da concepção conceitual básica - talvez a ''''política'''' prometida para setembro de 2008 que, supõe-se, deva expor princípios e premissas conceituais, identificar preocupações e vulnerabilidades, formular objetivos e uma orientação geral - e do projeto de preparo militar por ela regulado deverão resultar medidas simples e imediatas, outras demoradas, a serem levadas a cabo com continuidade, sem tropeços como os da odisséia do programa da propulsão naval nuclear em curso. Algumas, importantes e complexas, estarão sujeitas a controvérsias motivadas por perspectivas e convicções culturais das Forças Armadas, organizações hierarquizadas e de formação homogênea que, receptivas às tecnologias novas, evoluem com menos desenvoltura nas suas concepções clássicas. Entre elas, as que ''''mexerão'''' em questões como a integração (estratégica, operacional, logística e de inteligência) e organização das Forças Armadas (estruturação, dimensões, meios e sistemas de armas), suas doutrinas, o serviço militar ante a tecnologia moderna e a distribuição territorial.

A despeito de eventuais controvérsias, os militares, tradicionalmente pautados pela conveniência nacional, vão superar suas dificuldades conceituais. Mas isso não é tudo: para que a ajustagem da defesa nacional ao século 21 seja bem-sucedida há que respaldá-la na reversão do descaso societário e político pelo tema. Sem essa reversão será difícil dirimir o processo vicioso que volta e meia enseja dúvidas sobre as finalidades do poder militar, prejudiciais à qualidade da concepção conceitual básica cuja formulação é responsabilidade militar e civil (política, diplomacia, instituições afins ao tema): a defesa externa, contra quais ameaças imagináveis? A garantia da lei, ordem e segurança pública? O apoio ao desenvolvimento e a populações marginalizadas, a presença territorial? A participação em intervenções sob mandato internacional? É comum a crítica, acadêmica e da mídia, à autonomia corporativa das Forças Armadas: não seria essa autonomia estimulada pela apatia alienante? Nas pesquisas de opinião, as Forças Armadas são bem situadas no quesito confiabilidade, mas a defesa está ausente dessa aferição: trata-se da confiabilidade relativa à ética, num universo público entendido como venal.

Essa questão estrutural está na agenda de muitos países. Precisamos resolvê-la identificando e avaliando nossas preocupações, vulnerabilidades e problemas verossímeis, definindo as prioridades de preparo que lhes correspondam - o que pode gerar polêmicas e ressentimentos - e procurando compatibilizá-las com o sufoco fiscal. Sufoco compreensível diante de outras demandas nacionais, errado é ele atuar menos por criteriosa opção racional indicadora de percepção do que justifica cuidados e dos riscos por não atendê-los e mais no ''''embalo'''' do desinteresse.

No desdobramento do projeto concreto do preparo militar um aspecto se enquadra com propriedade no momento presente do desenvolvimento brasileiro: a tecnologia e sua indústria correlata.

Dos 1930 aos 1970 os militares estimularam a implantação da indústria de base e de transformação, entendidas à época como necessárias à segurança nacional; hoje essa idéia se aplica com mais razão à alta tecnologia, essencial à capacidade militar moderna e autônoma. Mas a tecnologia militar moderna é cara e sujeita à rápida obsolescência. Essa dupla complicação, econômica e tecnológica, exige a associação do preparo militar ao desenvolvimento nacional de alta tecnologia, ao acervo tecnológico e industrial que já existe e ao que tenha potencial promissor. Em suma, às instituições de pesquisa e desenvolvimento e empresas de alta tecnologia, capazes de desenvolvimentos autóctones e/ou de absorver e praticar a alta tecnologia obtida do exterior - condição indispensável à credibilidade do uso soberano de meios importados, que deve referenciar a propalada aproximação estratégica França-Brasil.

O preparo parametrado pelo avanço tecnológico e a revisão das questões citadas acima (integração, estrutura, organização, meios, distribuição territorial, dimensões, serviço militar), de conformidade com a concepção básica, darão respaldo e respeito estratégico à tradição brasileira de buscar soluções negociadas para contenciosos internacionais. E darão credibilidade à candidatura ao Conselho de Segurança da ONU, que pressupõe condições de contribuir ponderavelmente para o controle de perturbações da estabilidade e da ordem, no mínimo na sua região geopolítica.

Os que se preocupam com o tema defesa nacional ''''torcem'''' para que a retomada do preparo militar, aparentemente objeto de alvissareira, embora de tardia atenção, não venha a ser uma frustração. ''''Torcem'''' para que ela se realize, com comedimento, mas atenta à conveniência de ser o ideal pacifista apoiado em capacidade estratégica coerente com o Brasil.

Mario Cesar Flores, Almirante-de-Esquadra (Reformado)

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